texto:
"... e o tempo que passei cuidando de meu pai, não conta? Não contam os horários dos remédios, os banhos de leito, a comidinha na boca, eles sempre arrumadinhos e perfumados a qualquer hora, nada disso conta? E quantas vezes não fui à casa dela acudir os pais que ela abandonou entregues à própria sorte? E os livros que li? Foram centenas de livros, uma vida inteira que me tornara a mais culta que a maioria das pessoas daqui, não conta? Mas também, pra que ler tanto? Precisava disso para trocar fraldas geriátricas todas as noites, pra conversar nas calçadas nas noites de verão, falando nem sei de quê? Nunca de livros, nunca de literatura! Era perguntar sobre a saúde de um, comentar a gravidez de uma adolescente do bairro, saber se o padre estava almoçando direito (quem estava cuidando disso?)... e eu que sonhara com marido, filhos e casa arrumada, o que é que eu fiz? Até os móveis que uso, a cama em que durmo, fazem parte da casa de papai: são os móveis que eles um dia sonharam para a casa que eles fizeram, do jeito deles! Engraçado, nasci aqui! Me criei nos limites dessa casa, nas divisas que meus pais me deram. Nunca me faltou comida, roupa lavada, bolo de aniversário, presentes de Natal! Nem sei mais se amei meus pais - nunca questionei os horários de sair e de voltar, os cardápios das refeições, nem mesmo a cor das paredes da casa e nem mesmo a do meu quarto. Não contei para mamãe quando fiquei moça nem do meu primeiro beijo! Meu pai nunca me pediu um Boletim Escolar. Acho às vezes que cuidavam de mim para me ensinar a cuidar deles mais tarde - e nem percebi a transição. Aos poucos, passei a pagar a luz, a água, o telefone e as despesas corriqueiras que iam surgindo até que uns meses depois fui perceber que até o Supermercado agora era responsabilidade minha! Não acho nem que eles perceberam isso também. A medida que mais medicamentos eram acrescentados a seu coquetel diário, mais difícil para eles era se sustentar ... e a mim e ao meu irmão. E eu via o prazer no meu pai em comprar seu cigarrinho com o dinheirinho miúdo que ele já levava contadinho no bolso direito da calça! E a carinha de felicidade que mamãe chegava com o papel da sua fezinha no bicho, dobradinha, amassada entre os seus dedos trêmulos?..."
(trecho da peça "Balanço Final", de minha autoria, onde Leny Tostes interpreta a professora solteirona aposentada, Gracinha em dez 2007)
Um comentário:
O texto é bem verdadeiro.Amei o sapato verde da Dona Leny, é o máximo!!! E não é só o sapato, é toda ela. Diga a sua mãe que estou apaixonada pela elegância e postura. O sapatinho verde é de dar inveja a qualquer "Gata Borralheira"!!!!!! E o laço??? Tudo perfeito. Desculpe-me Marcelino, só vejo sua mãe. Outra hora falo do texto.
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